Ex-secretario de segurança publica nacional Ricardo Brisolla Balestreri diz que o atual modelo de polícia é um
desastre
Foto: Renato Araújo/ ABr
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Presidente do Observatório do Uso Legítimo da Força e Tecnologias Afins e especialista em Direitos Humanos, o ex-secretário nacional de Segurança Pública Ricardo Balestreri defende nesta entrevista – que complementa a reportagem Polícia é um caso de política, da edição impressa do Jornal Extra Classe, edição de setembro de 2013 – o modelo de multiplicidade de polícias especializadas e de ciclo completo de atuação, responsáveis por toda a atividade de prevenção, ostensividade, investigação, inteligência e instrução processual. Para ele, o modelo de polícia adotado pelo Brasil tem distorções que a tornam uma das piores polícias do mundo. |
Extra Classe – Os questionamentos sobre a estrutura e a conduta das forças
policiais não são novos, mas se intensificaram com os episódios de violência
policial que têm marcado as manifestações de rua pelo país. Por que é
necessário repensar esse modelo de policiamento?
Ricardo Brisolla Balestreri – Há uma parte da polícia que sempre se portou
e se porta mal, mas há também outra, que sempre se portou e se porta bem, que
sempre garantiu e garante nossa segurança, nossa integridade, nossos direitos.
A parte que se porta mal, o faz por duas razões básicas: a primeira é a psicopatia
de indivíduos que se infiltram em uma profissão de grande poder real, com o
fito de explorar através da corrupção, de maltratar, de torturar, de matar.
Para esses não há cura e as instituições policiais precisam estar muito alertas
para não permitir o ingresso e a permanência; a segunda é a ignorância, a falta
da construção de conteúdos morais e de capacitação técnica dos operadores.
Nesse caso, a solução é uma educação de qualidade, que passe pela parceria com
o mundo acadêmico, mas também pela reflexão motivacional interna, andragógica,
filosófica, sociológica, que se deve fazer a partir das escolas de polícia. O
modelo de polícia do Brasil é um desastre e é claro que isso incrementa o poder
da parte doente e o desencanto e até certa impotência da parte sadia, mas mesmo
dentro de tal modelo é inadmissível a má conduta policial.
EC – Qual modelo de polícia o senhor defende?
Balestreri – Defendo o modelo que viceja em praticamente todo o mundo
democrático e civilizado: o de uma multiplicidade de polícias especializadas,
de ciclo completo (isto é, responsáveis “do alfa ao Omega” pela atividade
policial que lhes compete, incluindo prevenção, ostensividade, investigação,
inteligência e instrução processual). Polícias que possam responder por
completo às adequadas demandas do cidadão e que possam ser responsabilizadas in
totum pelo desenvolvimento competente de suas atribuições. Ou seja, o contrário
do que temos no Brasil: duas meias polícias estaduais que se atrapalham
reciprocamente, criadas para depender burocraticamente uma da outra e para
anular uma à outra (parece até que pela via inspiradora da máxima romana
“dividir para governar”, o que garantiria, sempre, instituições de serviços
mínimos de manutenção da “ordem”, mas nunca fortes e suficientes para atacar
com autonomia o crime e a corrupção que podem chegar e chegam ao mais alto da
pirâmide social). Nesse sentido, acho uma pobreza e uma banalidade a proposta
que vai hegemonizando o senso comum até da intelectualidade, de uma “polícia
única”. Polícia única é um perigo. Pode rapidamente se transformar em polícia
de controle político. As ditaduras, em geral, é que gostam dessa ideia de
polícia única. Várias polícias são importantes para o “intercontrole”, o
controle recíproco, e o evitamento de um inchaço abusivo de poder. De maneira
geral, os países do velho mundo contam com modelos policiais que poderiam nos
inspirar, mas mesmo nos EUA e Canadá, por exemplo, há excelentes experiências
que precisamos tomar em conta. O que não podemos é continuar insistindo na
asneira que estruturamos aqui, tendo como resultados os ridículos índices, que
temos, de responsabilização criminal. Devemos isso aos cidadãos e também aos
bons policiais, que veem seu esforço e sacrifício sendo jogados fora todos os
dias. Quando fui Secretário Nacional de Segurança pública “peitei” a discussão
das reformas e com isso ingressei num verdadeiro inferno de pressões e ameaças
corporativistas, de gente interessada a manter tudo como está, a fim de
garantir velhos ganhos e privilégios. Por muito pouco, não fui “apeado” do
cargo pelo mais infame dos lobismos, que há anos vêm cercando o executivo
federal, os governos estaduais e o Congresso Nacional.
EC – No encontro do Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2012, a Dinamarca
remendou ao Brasil a extinção da Polícia Militar, mesma posição da Anistia
Internacional. O senhor concorda?
Balestreri – Parece-me que uma recomendação tão técnica, vinda de países e
de instituições admiráveis, mas que desconhecem a profunda complexidade do
Brasil e de seu sistema de segurança, é no mínimo uma imprudência. A ONU, a
Dinamarca, a Anistia Internacional (que já dirigi no Brasil e que admiro
profundamente), devem recomendar o respeito aos direitos humanos, a reforma do
modelo policial arcaico, a fim de trazer maior eficiência e eficácia no
atendimento da cidadania, e por aí devem se limitar. Sugerir fechar
instituições, desconsiderando suas histórias e importantes ações (ao lado dos
erros que também cometem), entrar em detalhes de forma, me parece uma atitude
que revela o ranço do colonialismo cultural e do eurocêntrico que, sem querer,
herdaram da velha ordem mundial. Os brasileiros é que precisam decidir o que
querem manter, o que querem fechar, o que querem aperfeiçoar, o que querem
criar. Não precisamos mais desse tipo de intervencionismo e tutoramento. Além
do mais, tais posições revelam ignorância técnica, preconceito e
desconhecimento de gestão complexa. Quem um dia comandou o sistema, como eu,
facilmente avalia o absurdo de propostas sectárias como essa e sabe o que
aconteceria ao Brasil se acordasse sem as suas polícias militares, os grandes
sustentáculos “de escala” da nossa já combalida segurança pública.
Emocionalismo e demagogia, mesmo quando não mal intencionados, só ajudam a
afundar ainda mais o sistema. Eu tenho sido, há anos, um crítico público e
ferrenho do que vem ocorrendo no Brasil, nessa área, mas creio que precisamos
criticar com seriedade e apontar caminhos viáveis que não sejam os da mera
desconstrução. As polícias militares possuem inúmeras qualidades e – a par dos
erros – também acertam muito e efetivamente protegem os cidadãos mais simples.
Contudo, urge que se libertem totalmente da “ideologia de segurança nacional”
(que, como “currículo oculto”, ainda possui grande influência), da vinculação
com as Forças Armadas (instituições respeitabilíssimas na democracia mas cuja
lógica de “defesa nacional” só de forma muito oblíqua tem algo a ver com a
lógica da “segurança pública”), dos regulamentos disciplinares anacrônicos
afeiçoados à ditadura, das carreiras diferenciadas de praças e oficiais, que
criam estamentos internos desprovidos de comunicação fluida e profissional. A
elas, as PMs, precisam também ser facultados os mesmos direitos que são
facultados ao conjunto da cidadania trabalhadora (como por exemplo o amplo
direito à sindicalização, coisa burramente recusada pelos governos da ainda
contaminada democracia brasileira, como se qualquer questão social - mesmo a
questão social da polícia – pudesse ser historicamente criminalizada e contida
à base de negações e truculências). Para tudo isso (que alguns chamariam de
“conteúdo da desmilitarização”) se realizar, não é necessário que se percam a
“estética militar”, nem os princípios da hierarquia e da disciplina (desde que
legais, morais e impessoais). Creio mesmo que o povo deseja que sua polícia
mais ostensiva seja facilmente e publicamente identificada pela farda e pelos
ritos hierárquicos, sempre que isso não signifique a desumanização dos
operadores. Mas mesmo tal coisa deve ser resolvida pelo povo brasileiro e por
seus representantes (que, aliás, precisam melhorar muito).
EC – O Brasil tem o maior número de mortes violentas do mundo, segundo a ONU,
com 50 mil casos por ano e um índice de solução de homicídios violentos de 8%.
Por que a polícia brasileira é tão ineficiente?
Balestreri – Por tudo isso que dissemos acima, mais os pífios orçamentos
federais e estaduais para segurança pública, além dos degradantes salários e
condições de vida dos operadores do sistema. É muito difícil construir bons
resultados em meio ao descaso da gestão pública. Nesse sentido, os bons
policiais fazem um trabalho heroico, em meio ao mais completo abandono.
Lembremos, ainda, para reforçar esse elenco, do infeliz sistema de polícias
divididas e interdependentes e do inquérito policial como uma herança inútil
(porque uma prévia de tudo o que deverá ser refeito na justiça), cara,
extemporânea e violadora dos direitos humanos (uma vez que não garante o amplo
direito ao contraditório), que cartorializa (ao lado de um irracional sistema
de registro de ocorrências) a polícia judiciária brasileira. Os delegados no
Brasil são espécies de juízes de instrução sem poder real que trabalham em algo
como um sistema de ensaio e pantomima. Por isso, defendi que os delegados deveriam
passar ao poder judiciário e tornarem-se juízes de instrução de fato e de
direito (talvez aproveitando-se alguma inspiração do modelo italiano), onde
então seus conhecimento jurídicos passariam a ter real valor. Poderiam, dessa
forma, também levar um sopro de competência a um poder judiciário moroso,
desacreditado, insuficiente e inapetente para a vida concreta. As polícias
deveriam ficar reservadas exclusivamente à ostensividade, mediação social e
prevenção, inteligência, registro simplificado e rigorosa investigação, e ter
formação acadêmica própria à essas atividades. É claro que para tudo isso
acontecer, precisaríamos passar a borracha no danoso Artigo 144 da Constituição
Federal e reescrever todo o texto sobre segurança pública. Há, pela frente, um enfrentamento
histórico, uma vez que os bandos corporativistas que circulam no Congresso
Nacional não vão abdicar facilmente de seus privilégios e oportunidades “em
prol da cidadania”.
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